terça-feira, 12 de julho de 2011

Cowboy forever

Esta não é uma história sobre deficiência. Nem sobre fé. Muito menos sobre viagens, ou problemas de mobilidade. Nem sobre  sexualidade, anseios, realizações, família e amor. Não é especificamente sobre nenhum destes assuntos, mas é simultaneamente sobre todos. Esta é a história de João Carlos Cravo Pombeiro Filipe.
João nasceu na madrugada festiva da noite de ano novo de 1962. Para a sua mãe, Concha, pouca festa houve nesse dia. Um trabalho de parto prolongadíssimo, um marido ausente a divertir-se no Casino Estoril e uma equipa de médicos negligente fizeram com que o seu segundo filho nascesse com paralisia cerebral. João não culpa Deus, mas não se coíbe de apontar o dedo à falta de apoio parternal e aos serviços de saúde que o fizeram vir ao mundo. Mas isto seria apenas o início de uma caminhada riquíssima, que plasma de forma comovente e única a força desta mãe e filho.
Força é , aliás, um adjectivo que Concha, ou Conchita,  emana por todos os poros da sua figura. Recebeu-me solícita, cordial e maternalmente na sala grande de sua casa. Actualmente tem 82 anos, desloca-se com a ajuda de canadianas, os pés estão envoltos em grossas meias de descanso. Mas tudo, absolutamente tudo nela – desde a pose, ao olhar brilhante – transmitem vitalidade e nenhuma fragilidade. O João desliza pela sala na sua cadeira de rodas, simultaneamente silencioso e imponente, com o brilho nos olhos que herdou da mãe. O  telefone toca, Concha atende. Do outro lado, alguém tenta vender um produto. A dona da casa declina e, perante a insistência, desliga calmamente o telefone enquanto  encolhe os ombros. Com a mesma determinação que a fez lutar toda uma vida por uma inclusão suave e justa do filho na sociedade, com a mesma determinação que, antes do João estar institucionalizado, o levou ao colo escadas abaixo milhares de vezes. “Já respondo às suas perguntas, deixe-me só tratar aqui de umas coisas.” Abre uma pequena mala que tem ao lado, de onde vai tirando roupas que mostra ao João em busca de aprovação ou reprovação. “ Estas calças queres? Olha que são fresquinhas para o Verão.”  Sabe que a personalidade do filho necessita daquele escrutínio. De cinco em cinco minutos, avisa o João para permanecer direito na cadeira. “Ele tem tendência a entortar-se, não pode ser!”. E eu fico ali, calada, a observar o momento dos dois como se de um ritual se tratasse. E a sentir na alma a afirmação que o João fizera momentos antes de chegarmos a casa de Concha: “ A minha mãe é, sem dúvida, a pessoa que mais sacrifícios fez por mim e mais me incentivou até hoje”.
Antes de chegarmos àquele primeiro andar de um prédio com acesso a cadeiras de rodas, em Oeiras, o João recebeu-me na sua casa. A instituição Nuno Belmar da Costa, onde acabou de mudar para um quarto maior. “Sabes, é que o colega que morava aqui casou e foi morar para Inglaterra, então eu pedi para mudar”. Está à minha espera no jardim, à porta, e assim que me vê, o rosto ilumina-se no sorriso, imagem de marca para todos os que cruzam o seu caminho. Desliza rapidamente para dentro para me mostrar o seu quarto novo, pelo caminho outros utentes se atravessam mas o João, qual piloto fómula 1 das cadeiras de rodas, todos ultrapassa. Subimos no elevador até ao 3º. piso.
A porta do 302 está aberta. À porta, uma placa com a inscrição “cowboy forever”.  Ele entra, eu atrás - “É bonito não é?”. Logo no pequeno corredor da entrada, a casa de banho. Ao fundo, duas grandes janelas espraiam-se pelo jardim. A secretária, com um computador em cima. Do lado direito, a cama e um móvel onde expõe os diplomas e condecorações. Do lado esquerdo, estantes e mais estantes repletas de fotografias, de recordações e de livros, mesmo muitos livros. Uma das fotografias mostra um João mais novo, sempre sorridente, cheio de papagaios coloridos ao colo “Foi em Tenerife.” Pergunto-lhe que sítios já visitou. “Adoro viajar. Já fui a Madrid, Barcelona, Córdoba, Granada, Santiago de Compostela, às Canárias. Mas também a Paris, Londres. E em Itália conheço a região da Toscana, fui com o meu irmão e cunhada. Mas a minha primeira viagem de avião foi para Copenhaga. O que mais gosto de ver são museus, se pudesse conhecia a Europa toda. África gostava de ir pela só pela aventura. E na América, talvez o Perú e o México. América do Norte não, é só consumo!”.
A parede por cima da cama está cheia de quadros feitos pelo João, utilizando a máquina de escrever. “Aprendi sozinho, ninguém me ensinou”. Na estante dos diplomas, um chama a atenção: foi atribuído pela Japanase Society for Crippled Children, em 1981. Pergunto do que se trata. João solta uma gargalhada e a voz da sua resposta vem cheia de orgulho: “Ah isso! Foi uma competição internacional de gravuras feitas em máquinas de escrever. Éramos quase duzentos participantes de 27 países. Eu concorri e ganhei o primeiro prémio !”. Por cima deste diploma outro, mais recente, de Maio de 2010 a propósito da “Muestra Nacional Artística de la Discapacidad”, em Espanha, atesta a proactividade do João em mostrar a sua arte.
Na parede oposta, o gosto pela arte continua. Uma colecção de máscaras nativas africanas enche o branco. “Acho que o gosto pelas máscaras veio também com a Antropologia, a minha primeira licenciatura. Sou uma pessoa que gosta muito de ter experiências, eu acho que as máscaras me fazem localizar em realidades e sítios diferentes. Sim, é isso. As máscaras remetem-me para outro mundo, para outra identidade. Vamos para o café?”
Descemos para a esplanada de um pequeno café ao lado do centro. O dono cumprimenta familiarmente o João, que pede um batido de manga que vai bebendo por uma palhinha. Eu fico-me por um café. Começamos a falar da sua vida por ordem cronológica. “A memória mais antiga que tenho é a de brincar com cubos e legos, e também com uma boneca pequenina que havia lá por casa (risos). Quando era criança, a minha mãe tentava ensinar-me a ter equilíbrio usando pneus dos carros. Punha dois ou três um em cima dos outros e punha-me lá dentro, para eu tentar estar de pé. Ainda cheguei a andar utilizando um andarilho, mas aos 14 anos caí e ganhei medo.” A escola, as instituições e a reabilitação sempre foram uma realidade na sua vida. “Dos dois aos quatro anos estive no Centro de Reabilitação Calouste Gulbenkian. Dos quatro aos nove em Alcoitão, e depois voltei, até aos 18, para o Gulbenkian. Foi neste período que concluí a quarta classe e o ensino secundário, em 1981, na Escola Secundária de Carcavelos, ali ao pé dos Maristas. Depois fui para a faculdade incentivado pelo meu irmão. O que queria mesmo era ir para a de Belas-Artes, mas os acessos eram impossíveis. De todas as (poucas) opções, a melhor era a Universidade Nova. Fui para Antropologia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Caí lá de pára-quedas. Em 1982, as casas de banho ainda não estavam adaptadas a deficientes. Tinha de fazer xixi num corredor. Mas isso não foi problema. A experiência não podia ser melhor”. O vento levanta-se, começa a ficar frio e resolvemos entrar para continuarmos a conversa”. Acabei o curso de Antropologia em 2002. Foi uma vitória imensa. De 2002 a 2005, procurei trabalho e nunca arranjei. Esta fase foi complicada. Fiquei angustiado, deprimido. Em 2005, a incentivo da minha mãe, voltei à faculdade. Entrei em História, mas o que queria mesmo era História da Arte. Consegui vaga no ano seguinte e olha.. Aqui estou! Não tenho pressa de acabar, até porque faço outras coisas.”.
Dado o seu percurso escolar normal e o seu percurso de vida normal, pergunto-lhe se, tal como o antigo inquilino do seu quarto novo, gostava de casar. O João torna a rir. “Claro que gostava de casar. Antigamente tinha a pancada de viver sozinho. Agora já me passou, são coisas que se vierem vêm, se não vierem tudo ok. Mas está claro que que gostava de ter uma companhia. E de algum modo sinto-me infeliz com isso. Já tive três namoradas, todas deficientes. E muitas paixões, por pessoas que não eram fisicamente deficientes. Como sou uma pessoa que gosta muito de ter experiências, eu gostava que acontecesse”. Rimos os dois. “Não posso dizer mais nada sobre isto, já disse tudo. Mas sempre falei abertamente com a minha mãe sobre estas coisas, e “ela comigo.” Falamos então de felicidade. O João pensa que a felicidade é relativa, ninguém é sempre feliz. “É uma questão de fantasiar,” diz-me. “Acho que não sou feliz nem infeliz. Arranjo é estratégias para ser feliz. Estou a ser um bocado filósofo, não ‘tou?”.
Voltamos à sala de Concha. Quando saímos do café, fomos visitá-la, ela mora propositadamente pertíssimo da instituição. Continua a sua saga em mostrar as roupas que acha mais confortáveis para o João, continua a pedir que se mantenha direitinho na cadeira. Calma, forte, terna. Quando termina a sua tarefa, fala-me do Zé, seu companheiro por mais de 32 anos. “Mais que um pai para mim”, afirma o João. Concha conta como o Zé visitava o João todos os dias, religiosa e amorosamente. A voz treme pela primeira vez e o luto que veste adivinha a notícia. “Morreu faz ontem exactamente um mês, de repente.” Em toda a sala, sente-se o peso da perda recente e, por fim, a dor transborda dos dois. Pergunto ao João se acredita na vida depois da morte. Com os olhos molhados, espreita por cima dos óculos e responde calmamente que acredita. “Acredito, pelo simples facto de gostar de conhecer quem eu era, ou seria, noutro corpo. Ou quem fui numa vida passada, com outra liberdade.”
Não sei como seria o João. Mas até tenho medo de descobrir. Porque me contou a história de alguém que vive sem limitações de qualquer ordem. A história de um homem licenciado, humano, autónomo, denso, extremamente inteligente e sensível, viajado. Com o bónus de ser o possuidor de um sorriso que ilumina o mundo. Um verdadeiro “cowboy forever”.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Os brincos azuis

Hoje comprei um presente à minha mãe. Por acaso nem é normal, sou pouco dada a mostras de afecto patrimoniais. Mas hoje saiu-me, vi uns brincos com o nome dela escritos e não resisti.
Foi um gesto pequenino, mínimo. Consciente e banal, achava eu. Até que lhe enviei uma msg a comunicar que lhe tinha comprado um presente. Ela respondeu "Obrigada, sobretudo porque faz hoje um ano que te fiz passar um mau bocado".
Estremeci com a mensagem. Confesso que chorei. Porque faz exactamente um ano, entrei com ela no Hospital dos Capuchos de urgência, com o diagnóstico de um derrame cerebral. Ela já estava sem reacção, inanimada. E antes despediu-se de mim, disse-me onde estava o ouro (!!!) e pediu para tomar conta da mana. Enfim, um cenário dantesco. O diagnóstico estava errado, tratava-se de uma meningite linfocitária e felizmente três semanas depois já estava tudo normalizado.
Este post não é suposto ser lamechas, nem para remexer num assunto sobre o qual já fiz a catarse completa (isto pode dizer-se assim?). É apenas para constatar o facto do nosso cérebro, da nossa alma, do nosso âmago, enfim, o que quer que seja, operarem irracionalmente por nós. Foi demasiada coincidência esta minha necessidade de a mimar, logo hoje. Destino? Não sei. Só acho que há certas ligações viscerais na nossa vida, tão fortes, tão palpáveis que nos levam a episódios destes. É o sangue a chamar talvez. E é o gostar, aquele gostar tão imenso que sentimos o outro debaixo da nossa pele, a latejar nas veias, a encher-nos a vida.
Que bom continuar a comprar brincos para ti mãe. Azuis. E amarelos, e verdes, e de todas cores. Temos todo o tempo do Mundo.

P.S. Já é a segunda vez que escrevo sobre ela, espero que um certo senhor que habita por casa não se sinta lesado. Escrevo por ímpeto, já sabes papi. Um dias destes certamente ele trará o teu nome.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Jornalismo vs História da Arte (ou a Casa dos Patudos)

E pronto, as memórias desenterram-se quando menos esperamos ou quanto menos as procuramos. Estou para aqui na faculdade, a estudar História de Portugal do século XX. Mais precisamente a queda da Monarquia e a Implantação da República. Assim que os meus olhos bateram no nome José Relvas, voaram os apontamentos para o outro lado da mesa e este post começa a surgir. Porquê? Porque me lembrei de onde surgiu o meu amor por História da Arte, que me levou a optar por licenciar-me primeiramente nesta ciência (siim, H.A. é uma ciência!!!) e não em Jornalismo, como estou a fazer agora.
Há gostos que simplesmente nascem connosco. Outros, que vamos adquirindo desde pequeninos, ao ponto de não nos lembrarmos onde surgiram. Há ainda aqueles que nos transmitem, e que se aprendem. Não foi  nenhum destes casos que me aconteceu. Gostar de arte e de arquitectura foi uma paixão assolapada, visceral, que nasceu súbita e incontrolavelmente numa visita à Casa dos Patudos, antiga residência do honorável ex-ministro das Finanças do primeiro Governo Provisório português pós Outubro de 1910. Hoje, é casa-museu, ex-libris de Alpiarça. Não devia ter mais de oito, nove anos quando percorri aquelas salas pejadas de objectos que Relvas adquiriu em vida.
O encantamento começou logo cá fora, com as varandas de arcos e aquelas torres azulejadas.  Lá dentro, lembro-me dos enormes jarros de loiça chinesa. E dos passos abafados pelos arraiolos já meio desmaiados, das cortinas pesadas,  das mesas com pés trabalhados. E de falar baixinho, sentindo aquela quase reverência que caracteriza os museus e que os transforma em locais de culto, em santuários onde é bom andar devagar, perder tempo - e que é, afinal, ganhá-lo.
Foi, sem dúvida, a partir daqui. E gostei tanto que embirrei numa licenciatura em História da Arte na Nova. Não me arrependo minimamente. Hoje já sei que as tais torres azulejadas se chamam coruchéus. E que os arcos da varanda são de volta perfeita. Mas também sei que, o que gosto mesmo, é escrever sobre o que me apetece e poder ter a opção de participar, mais activamente, na vida dos outros. E ter o poder de fazer algo pelas pessoas, ou denunciar algumas situações. Daí estar aqui, agora. Com 22 anos e a acabar o primeiro ano de Jornalismo, sentada numa mesa solitária do bar do -1 da Escola Superior de Comunicação Social.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Tenho cá para mim

que o consumo de café e redbull atinge o expoente máximo por esta altura. Just a guess!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Ressuscitouuu

Não, não faleci nem tive um acidente. Nem tenho tido propriamente poucas ideias, ou uma vida tão banal assim que não justificasse um post ou outro. E desde a última vez que escrevi, também aconteceram três milhões de coisas plausíveis de ser "bloggadas".
Por exemplo, e o mais importante, as eleições. Agora que já tanta tinta correu sobre o assunto, não faz sequer sentido escrever nada sobre isso, até porque tudo o que me apetece dizer se condensa de forma muito mais inteligente e hilariante nesta emissão do Governo Sombra http://www.tsf.pt/Programas/BlogsExternal.aspx?content_id=1015547&audio_id=1871142 .
Esta minha inércia cibernáutica começou quando o blog foi abaixo cerca de uma semana. A partir daí, parece que o meu dinamismo inicial esmoreceu. A verdade é que acho que padeci do SFB, o Síndrome da Folha em Branco. Não sei se isto efectivamente existe, mas faz todo o sentido que exista e sempre ouvi dizer que o custa é começar. E agora apetece-me ressuscitá-lo.  E que engraçado. Oh! Coincidência das coincidências! Em plena época de exames. O cérebro humano opera realmente de uma forma singular. Vamos lá ver se desta é de vez. O blog, e a vontade de estudar.